História política
Quem matou Sidónio Pais? Autópsia põe em causa versão oficial
por Inês Cardoso, Publicado em 01 de Abril de 2010
Livro de Moita Flores questiona autoria do homicídio do Presidente da República. Crimes políticos do século XX não tiveram um julgamento sério.
Em 1918, Asdrúbal d'Aguiar era ainda um jovem legista mas o trabalho meticuloso já fazia adivinhar o lugar que iria ganhar na história da medicina legal. A autópsia "notável" que fez a Sidónio Pais repousa nos arquivos, mas a turbulência política dos anos que se seguiram ao assassinato do presidente da República fez com que passasse despercebida. Quase um século mais tarde, Francisco Moita Flores estudou detalhadamente as perícias feitas pelo médico e questiona a versão do crime que a história consagrou. O homicida, afirma o autarca, ex-polícia e escritor, não poderia ter sido José Júlio da Costa.
Reescrever a leitura de crimes enterrados no tempo não será tarefa fácil, mas pode trazer surpresas. Porque em Portugal, como sublinha ao i o advogado Ricardo Sá Fernandes a propósito do caso Camarate, não houve "um julgamento sério" dos vários crimes políticos do século XX. A justiça foi incapaz de dar resposta clara - ou pelo menos suficiente clara - para evitar especulações.
Começando ainda no final da monarquia, os homicidas de D. Carlos e D. Luís foram mortos no local e o processo ficou por ali. Júlio da Costa, que terá disparado contra Sidónio Pais, morreu no hospital Miguel Bombarda 28 anos depois, sem direito a julgamento. "Quanto ao [António Joaquim] Granjo, também se arranjaram uns responsáveis de ocasião, mas nunca se analisou o processo de fundo que levou à morte do primeiro-ministro", prossegue Sá Fernandes.
Já no Estado Novo, a morte de Humberto Delgado, que viria a ser analisada pelos tribunais só depois da Revolução. Rosa Casaco, o chefe da brigada da PIDE, deu-se ao luxo de posar para um semanário, junto à Torre de Belém, quando ainda era procurado. E finalmente o eterno enigma de Camarate, para o qual se abre uma janela de oportunidade no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Depois de ter passado as fases mais difíceis de admissão, o processo está em análise e Ricardo Sá Fernandes começa a acreditar num cenário à partida improvável: a realização de uma audiência pública.
Rever a investigação
Os historiadores passam a vida a rever teorias e a mudar peças do puzzle de sítio. Porque não há-de fazê-lo a investigação criminal? Moita Flores não tem dúvidas: da leitura do relatório da autópsia e exames forenses à roupa e arma de Júlio da Costa, "percebe-se que a história que a história conta não é a verdadeira". Esse é o ponto de partida para um romance que está em fase de impressão. "Mataram o Sidónio!" estará pronto no arranque da Feira do Livro, a 29 de Abril.
Rezam os compêndios que a 14 de Dezembro de 1918, quando o presidente da República se preparava para entrar no comboio rumo ao Porto, na estação do Rossio, José Júlio da Costa furou o compacto cordão policial. Escondida pelo capote alentejano levava um pistola. Disparou e apesar da confusão que se instalou, de que resultaram quatro mortos, não tentou fugir.
Nessa noite nasceram dois mitos. Sidónio, mártir cujo funeral reuniu dezenas de milhares de pessoas, tornou-se motivo de culto popular. Júlio da Costa foi endeusado pelo movimento republicano e originou as mais diversas teorias, até a de que teria executado o crime por ordem da maçonaria.
A versão do livro de Moita Flores é outra. Para a construir consultou os arquivos do Instituto de Medicina Legal e o relatório da autópsia. "Exames periciaes no cadaver do presidente da Republica Dr. Sidónio Paes no vestuario e na arma aggressora" é o nome do estudo de 64 páginas, assinado por Asdrúbal d'Aguiar e disponível para consulta na biblioteca-museu República e Resistência.
Tiros à distância
Diz-se que Sidónio Pais terá sido atingido por dois tiros, mas afinal foi apenas por um. "O que os jornalistas relataram, visto pelas testemunhas no local, foram os orifícios de entrada e saída", explica Moita Flores. Mais importante para pôr em causa a autoria dos disparos é a indicação de terem sido feitos à distância e não à queima-roupa.
Asdrúbal d'Aguiar viria a escrever publicações de referência sobre autópsias e perícias forenses. Mas em Dezembro de 1918 a medicina legal e a investigação criminal davam ainda os primeiros passos. Curiosamente, a paternidade dos institutos de Medicina Legal e da Polícia de Investigação Criminal deve-se a Sidónio Pais, que os criou por decretos publicados em Setembro desse ano.
Porém, nem tudo depende da eficácia da investigação. O processo Camarate, defende Ricardo Sá Fernandes, é a prova de que a verdade pode perder-se em novelos burocráticos e segredos de justiça. Ninguém poderá dizer que o primeiro-ministro e o ministro da Defesa foram vítimas de atentado. Mas para o advogado é "insofismável que aquilo não poderia ter sido um acidente". Talvez nunca venha a descobrir o que se passou. Como poderão nunca se desvendar as circunstâncias da "Noite Sangrenta" em que foi morto António Granjo e outros simpatizantes de Sidónio.
Depois da espessura do romance que daqui a um mês estará na Feira do Livro, em que deambula por uma Lisboa de luto com a gripe espanhola, Moita Flores vai fazer uma pausa e debruçar-se sobre temas mais simples. O próximo livro, que conta lançar antes do Natal, será dedicado ao público jovem.
"São contos à volta de matérias que os alunos têm dificuldade em aprender, como a tabuada, os planetas e cometas, o ciclo da água..." Presidente da Câmara de Santarém, ex-inspector da Polícia Judiciária, comentador quando temas criminais vêm à baila, é como escritor que Francisco Moita Flores gostaria de ser identificado. "Preciso de escrever para me sentir vivo."
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