(texto enviado para a Biblioteca Municipal de Beja, a propósito da iniciativa / conferência "À conversa sobre Gonçalves Correia")
Algés, 13 de Junho de 2012
Introdução
Ao sentar-me em frente ao teclado para começar este texto sobre António Gonçalves Correia ocorrerem-me pelo menos uma dezena de possíveis abordagens. Penso num enquadramento da sua vida e obra no contexto diverso das várias correntes do anarquismo português, ibérico e universal. Um texto centrado no caso concreto da Comuna da Luz, com todo o seu significado político, ideológico, cultural e económico, no contexto da afirmação dos projectos de autonomia e autogestão em Portugal. Uma breve síntese da relação entre os relatos que nos chegam através de família, amigos e estudiosos acerca da forma como viveu e conviveu com terceiros, e o chamado "tolstoismo" enquanto corrente teórico-prática resultante da vida e obra de Leão Tolstoi, o nobre russo que prescindiu de tudo para procurar numa certa forma de autonomia e despojamento o belo e o essencial da vida…
Creio que qualquer uma das opções idealizadas corresponderia ao interesse de alguns dos presentes nesta sessão de dia 16 de Junho de 2012, em Beja.
Seja como for, arrisco uma outra via, mais arriscada: procurar encontrar na vida e obra de António Gonçalves Correia uma chispa que possa despertar quem consciente ou inconscientemente vive dormindo num mundo de loucura e opressões diversas. Em síntese, procurar a relação entre o pensamento de Gonçalves Correia e a luta pelo derrubamento das ditaduras que oprimem a maioria das 6 mil milhões de almas que connosco partilham o preciso momento em que nos reunimos para homenagear um grande homem, um grande alentejano.
Não sou, como Gonçalves Correia foi, um anarquista. Divide-nos aquilo a que os filósofos chamaram "a questão fundamental da filosofia": a questão da relação entre a consciência e o ser, entre o espiritual e o material. O anarquismo de Gonçalves Correia é profundamente idealista, tanto na significação comum da expressão como no seu sentido filosófico: entende que a ideia precede a matéria, e que por isso a origem da Revolução é antes de mais psicológica e ideológica, uma revolução que começa no espírito e se estende ao mundo material, das condições materiais da existência.
Entendo que é esta a principal limitação da sua mensagem: a ideia de que pela via da consciencialização dos homens – independentemente da sua classe de origem – se poderá chegar a um mundo novo.
Em tudo o resto acredito que Gonçalves Correia representou no contexto nacional um caso ímpar de desinteressada entrega à causa da liberdade e da dignidade humana. Ímpar sobretudo na mensagem, nova no contexto em que surge fundindo influências diversas e sobretudo uma vontade de fazer, de concretizar na prática os ideais que o influenciavam profundamente.
De entre os vários aspectos com profunda actualidade no seu pensamento e obra destaco três: uma nova concepção de educação integral, inspirada na experiência catalã de Ferrer i Guardia da Escola Moderna, e transpostas para uma prática quotidiana na comuna da Luz; uma postura revolucionária no que à relação entre seres sencientes diz respeito, expressa fundamentalmente nas suas obras "Estreia de um crente" e "A felicidade de todos os seres na sociedade futura"; uma visão de desenvolvimento que, assentando numa ideia de primazia da felicidade humana, se afastou em alguns aspectos das tendências primitivistas e anti-tecnológicas do anarquismo.
Escola Moderna
O momento presente é marcado em Portugal por involuções várias. Medidas que representam na prática retrocessos de várias décadas e que aproximam Portugal do contexto da Revolução Industrial, mas que são apresentadas e propagandeadas como modernices capazes de catapultar o país para os primeiros lugares do desenvolvimento económico à escala europeia e mundial.
Refiro-me por exemplo às alterações da legislação laboral, que resultam objectivamente em mais trabalho por menos remuneração, mas também a outros aspectos do processo em curso de destruição da economia nacional, como a elitização do acesso aos diferentes graus de ensino e à redefinição do tipo de educação que, com imensas limitações é certo, vinha sendo mais ou menos concretizada no Portugal pós-25 de Abril.
Hoje, no Portugal de 2012, a ideia de "educação integral" tão cara aos primeiros divulgadores da Escola Moderna é brutalmente vandalizada pelos fanáticos da escola segmentada e orientada em exclusivo para criar mão-de-obra, mais ou menos qualificada de acordo com "as necessidades do país". Trata-se pois da implementação de uma lógica radicalmente oposta àquela que defendeu, divulgou e procurou implementar António Gonçalves Correia no Alentejo pós-1910, com destaque para o período da Comuna da Luz, curto e destruído pelas forças repressivas do Estado de então.
É pois tendo presente também o pensamento e a obra de António Gonçalves Correia que proponho que, no momento presente, nos mobilizemos contra a destruição da educação pública e gratuita, acessível a todos (pelo menos em tese), de natureza mais ou menos integral, criando uma barreira política e social ao avanço do regresso à educação do período fascista, a um obscurantismo que resumia a educação dos filhos dos trabalhadores ao saber "ler, escrever e contar", atirando-os borda fora do sistema mal estivessem física e intelectualmente preparados para "produzir".
Felizmente a Escola Moderna encontra ainda em Portugal honrosas representantes, como a Voz do Operário, hoje resumida a três pólos – Graça, Ajuda e Restelo, todos no Concelho de Lisboa. A "Voz" já contou, no passado, com perto de 80 escolas, uma das quais se fixou precisamente em Albarraque, após o final da experiência da Comuna Clarão, penso que em terrenos que pertenceram à própria Comuna. Trata-se de uma ligação interessante (a confirmar-se) entre a vida de Gonçalves Correia e a mais digna representante da Escola Moderna dirigida aos filhos dos trabalhadores no Portugal em que vivemos, da ditadura da banca, do dinheiro e dos monopólios.
É fundamental lutar por uma educação diferente, integral, revolucionária, ecológica, anti-racista e anti-discriminatória, valorizadora do diferente. Uma escola que se afaste da ditadura dos resultados, das avaliações, da "exigência" centrada na autoridade do professor e não na responsabilidade dos alunos, de acordo com regras e normas por si definidos.
Uma nova relação entre seres sencientes
Outro aspecto verdadeiramente revolucionário da obra e do exemplo de António Gonçalves Correia diz respeito à visão que divulgou de uma sociedade futura na qual todos os seres – e aqui o todos é importante, por não se referir apenas aos seres humanos mas antes a todos os seres sencientes – possam encontrar a felicidade que por razões diversas lhes era (é) negada no seio do capitalismo.
Leia-se a propósito desta dimensão do seu pensamento a interessantíssima obra "A felicidade de todos os seres na sociedade futura", hoje disponível para descarga gratuita na internet, e verifique-se o quão à frente do seu tempo estava um homem que libertava pássaros enjaulados ou que era incapaz de encher de água uma bacia cheia de formigas, por amor a todas as formas de vida.
A questão do relacionamento entre o homem e os restantes animais não-humanos encontra no momento presente especial importância, por razões diversas, que vão dos problemas ambientais agravados pela existência de enormes produções agro-pecuárias ou pelo consumo absolutamente desproporcionado de carnes e produtos de origem animal como os ovos, por exemplo, até à própria questão da infelicidade que a nossa espécie impõe àquelas que invariavelmente reprime e submete com objectivos diversos.
Esta não é uma questão menor. Pelo contrário encontrava no pensamento de António Gonçalves Correia uma importante centralidade, o que aliás reforça a ideia de que o velho anarquista, adepto da vida e obra de Tolstoi, quase franciscano – no melhor sentido da expressão – na sua relação com a natureza e as suas criaturas, era também neste aspecto um homem muito à frente do seu tempo.
No Portugal de 2012 subsistem as touradas e "espectáculos" assentes sobre o sofrimento de animais; subsiste a caça, que aliás cativou para si extensas áreas agrícolas hoje desaproveitadas para a produção de alimentos; subsiste a visão do animal como objecto à disposição do homem, das suas necessidades e dos seus humores. Maltratar um animal é, no Portugal do século XXI, um crime menor, sem consequência relevante. Há quem mate um ser vivo não-humano "por desporto".
Este é um aspecto revelador da "civilização" em que nos tornámos, e ajuda-nos a compreender também o estilo de relação entre pares (entre seres humanos) que fomos mantendo e alimentando ao longo do tempo: relações de exploração, de violência e submissão, de exercício da força de uns sobre a fragilidade (as fragilidades diversas) de outros. Não é possível alterar a postura do homem perante a natureza e os animais não-humanos enquanto as relações entre seres humanos não forem radical e revolucionariamente modificadas.
É esta a segunda mensagem que arriscaria deixar, na tentativa de interpretar o pensamento e a obra de Gonçalves Correia à luz do tempo em que (sobre) vivemos.
Um novo modelo de desenvolvimento ao serviço do ser humano
O terceiro ponto que gostaria de referir diz respeito à questão fundamental do tempo presente: a do papel do ser humano no seio da sociedade e do tempo que é o seu no mundo.
Deverá o homem submeter a sua vida, a sua única vida, à economia e ao desenvolvimento? Ou pelo contrário, deve ser a economia e novas formas de desenvolvimento a servirem os interesses e as necessidades do homem?
A resposta parece evidente, mas de facto não é. Basta que analisemos o que tem sido o caminho percorrido pelas diversas comunidades humanas ao longo dos séculos e em particular nas últimas três décadas para compreendermos que tem sido o homem a sacrificar-se perante uma ideia de desenvolvimento, crescimento e consumo que não serve os interesses da maioria, antes alimentando de forma selvagem, patética e desumana uma minoria cada vez mais poderosa.
Relaciona-se com esta questão, naturalmente, a questão do Estado e da Autoridade, temas caros a várias correntes do anarquismo, com as quais de resto não partilho quer a análise, quer a ideia relativa ao rumo a tomar. O Estado é a expressão do poder organizado e repressivo de uma classe social sobre as outras e não é extinguível nem destrutível a não ser pela via da construção de uma sociedade sem classes, no seio da qual este se torne desnecessário e obsoleto. Por outras palavras, "o Estado não é abolido, extingue-se" (F.Engels).
Seja como for, creio que existe a abordagem anarquista ao problema do desenvolvimento uma série de preocupações de enorme relevância, que devem ser equacionadas e estudadas. Gostaria de, neste quadro, introduzir a terceira singularidade do pensamento de Gonçalves Correia, no seio do anarquismo libertário português: a valorização da máquina como instrumento de libertação do homem.
É sabido que no quadro da modernização tecnológica sofrida pela indústria durante o período a que se convencionou chamar “Revolução Industrial” surgiu um pouco por todo o lado, mas especialmente em Inglaterra, um movimento operário de resistência à tecnologia que via na máquina uma concorrente do homem, destruidora de postos de trabalho e por essa via de rendimentos próprios e das suas famílias. O "luddismo" teve um papel relevantíssimo num determinado momento de estruturação do movimento operário, ao qual a burguesia não reconhecia legitimidade nem direitos; os motins visavam muito mais do que a destruição pura e simples das máquinas, afirmando igualmente o poder da unidade dos trabalhadores, e a vontade destes de ver as suas condições de vida – miseráveis – substancialmente melhoradas através de processos de negociação colectiva, por exemplo.
O "luddismo" subsistiu para além dos primeiros tempos da industrialização no seio do anarquismo, representado em algumas das suas franjas, fundamentalmente ligadas a determinadas visões sobre ecologia por um lado e primitivismo por outro.
António Gonçalves Correia, que era como bem se sabe um tolstoiano, compreendeu bem a importância da máquina na libertação do homem face a tarefas penosas e prolongadas, identificou na tecnologia a capacidade (real) de libertar o homem de jornadas de trabalho imensas, intermináveis. E ao fazê-lo distanciou-se de perspectivas anti-tecnológicas que muitos poderiam supor existirem no seu pensamento. Trata-se da terceira dimensão do seu pensamento que gostaria de sublinhar nesta breve abordagem.
A ponte entre o que acabo de referir e o momento presente é evidente: importa lutar, no contexto actual, por um rumo absolutamente distinto do seguido, promovido e incentivado pela burguesia que subsiste agarrada ao poder enquanto os trabalhadores não forem capazes de o arrancar das suas mãos; lutar por menos horas de trabalho num mundo em que os avanços tecnológicos permitem a libertação do homem face a uma vida de labores intermináveis; lutar pela submissão da economia às necessidades do homem e contra a visão imperante, de completa submissão do homem (designado como "recurso", ou "recurso humano") às noções de eficácia, rentabilidade e até produtividade; lutar por um trabalho que seja fonte de realização e emancipação humana, contra um cenário actual marcado por condições de trabalho degradantes e perigosas, não raro responsáveis pela morte ou por acidentes e doenças graves, que limitam seriamente a vida dos trabalhadores e das suas famílias, contra a ideia de viver para trabalhar.
Conclusão
Abordar a vida e obra de António Gonçalves Correia deve ser muito mais do que um exercício académico ou um exercício meritório de homenagem a uma figura do passado. Pelo contrário, ou em complemento, pensar António Gonçalves Correia deve – em minha opinião – impulsionar a acção relativa a um presente que oprime e incapacita os seres de realizar a sua plena felicidade. Fazê-lo implica riscos. Creio em todo o caso que estes merecem a pena, e devem ser assumidos de forma descomplexada.
O exemplo e a obra de António Gonçalves Correia são demasiado importantes para se fecharem em livros, exposições ou colóquios. A questão todavia é saber como catapultá-los para a rua, para a intervenção de cada um de nós no seio das comunidades em que nos integramos, na luta que quotidianamente assumimos pela transformação do mundo.
É esse o desafio que vos deixo: procurar na obra, na vida e no exemplo deste homem singular, não as respostas, mas propostas e ideias que reforcem a luta absolutamente necessária – porque só ela é o caminho! –, por um futuro radicalmente diferente deste que nos "oferecem", e que mais não é do que o passado mascarado de modernidade.
Rui Vasco Silva
Trineto de António Gonçalves Correia.
1 comentário:
Caro Rui,
Ao interessante texto aqui publicado, damos conta e comentamos o mesmo em http://revistaalambique.wordpress.com/2012/06/23/a-conversa-sobre-goncalves-correia-19/
Abraços
Filipe Nunes
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