5 de setembro de 2012

Gonçalves Correia, no Diário do Alentejo

No seguimento das iniciativas da Biblioteca de Beja, um texto publicado na ultima edição do Diário do Alentejo (29.06)

Chegado ao Alentejo há uns anos atrás foi-me apresentado por edições da Câmara de Castro Verde, Gonçalves Correia. O nome desse anarquista de longas barbas veio a intitular um coletivo informal que de Ferreira do Alentejo a Aljustrel, amiúde levaram a cabo iniciativas anarquistas, como hoje a revista Alambique. As recentes atividades da Biblioteca de Beja em seu torno exemplificam as razões dessa designação para um projeto de difusão libertária a partir do Baixo Alentejo. Não há melhor senha para estabelecer uma ponte com as gerações dos nossos pais e avós, do que a sua invocação.

Ao contrário da memória das balas de José Luís da Costa, vingando a derrota da Comuna da Luz de Gonçalves Correia, ou do regicida Alfredo Luís da Costa de Casével, cujas evocações requerem contextualizar a normalidade então da ação direta violenta, já a memória de Gonçalves Correia é algo que não incomoda. Facto que se deve à natureza da sua filosofia humana. Figura respeitada, da esquerda à direita republicana de Beja, o “perigoso comunista” depois vigiado pela ditadura fascista, não requereu por parte dessas várias autoridades a perseguição assassina que outros conheceram, pois foi acima de tudo um pensador que agiu individualmente e não por via da organização anarco-sindicalista com quem mantinha laços. Deve-se sobretudo esse consenso, e tolerância à sua excentricidade, à sua postura tolstoiana, que se cruza na ética cristã, pela ideia do amor, da bondade e da partilha entre todos os seres vivos. A sua memória não são as revoltas das balas, mas do pacifismo.

Mas creio que o que devemos hoje a Gonçalves Correia é acabar com uma evocação memorialista que não incomoda… Antes frisar o exemplo da potencialidade individual, bem para lá da cidadania encerrada em cartilhas de direitos e deveres, mas antes refletindo essa característica do anarquismo que valoriza a prática do individuo, negando a subjugação pelo coletivo da organização militante, a fórmula que se impôs aos seus tempos de ação anarquista. Depois assinalar como o seu pensamento se ramifica hoje na principal linha de força do anarquismo dito verde. E aí sobretudo porque Gonçalves Correia, ao postular a relação com a natureza, não reduz essas preocupações num grupo veganista de direitos de animais (menos ainda a um partido dos animais), ou na espiritualidade new age de uma qualquer comunidade inacessível. O grande marco da sua vida que foi a Comuna da Luz (1917) assentava em viver a ruralidade como um projeto de autonomia, pondo em prática novas formas e relações de viver em comunidade. Viver no “aqui e agora” a anarquia. A procura dessa autonomia anti-autoritária, quebrando com o salariato e a propriedade privada, não isolava a comuna, mas antes requeria a ação com os demais vizinhos, pois de uma ideia de transformação social se tratava. O outro lado da potencialidade individual de Gonçalves Correia é pois a potencialidade da comunidade.

Filipe Nunes



(via Alambique)

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