Chegado ao Alentejo há uns anos atrás foi-me apresentado por edições da Câmara de Castro Verde, Gonçalves Correia. O nome desse anarquista de longas barbas veio a intitular um coletivo informal que de Ferreira do Alentejo a Aljustrel, amiúde levaram a cabo iniciativas anarquistas, como hoje a revista Alambique. As recentes atividades da Biblioteca de Beja em seu torno exemplificam as razões dessa designação para um projeto de difusão libertária a partir do Baixo Alentejo. Não há melhor senha para estabelecer uma ponte com as gerações dos nossos pais e avós, do que a sua invocação.
Ao contrário da memória das balas de José Luís da Costa, vingando a derrota da Comuna da Luz de Gonçalves Correia, ou do regicida Alfredo Luís da Costa de Casével, cujas evocações requerem contextualizar a normalidade então da ação direta violenta, já a memória de Gonçalves Correia é algo que não incomoda. Facto que se deve à natureza da sua filosofia humana. Figura respeitada, da esquerda à direita republicana de Beja, o “perigoso comunista” depois vigiado pela ditadura fascista, não requereu por parte dessas várias autoridades a perseguição assassina que outros conheceram, pois foi acima de tudo um pensador que agiu individualmente e não por via da organização anarco-sindicalista com quem mantinha laços. Deve-se sobretudo esse consenso, e tolerância à sua excentricidade, à sua postura tolstoiana, que se cruza na ética cristã, pela ideia do amor, da bondade e da partilha entre todos os seres vivos. A sua memória não são as revoltas das balas, mas do pacifismo.
Mas creio que o que devemos hoje a Gonçalves Correia é acabar com uma evocação memorialista que não incomoda… Antes frisar o exemplo da potencialidade individual, bem para lá da cidadania encerrada em cartilhas de direitos e deveres, mas antes refletindo essa característica do anarquismo que valoriza a prática do individuo, negando a subjugação pelo coletivo da organização militante, a fórmula que se impôs aos seus tempos de ação anarquista. Depois assinalar como o seu pensamento se ramifica hoje na principal linha de força do anarquismo dito verde. E aí sobretudo porque Gonçalves Correia, ao postular a relação com a natureza, não reduz essas preocupações num grupo veganista de direitos de animais (menos ainda a um partido dos animais), ou na espiritualidade new age de uma qualquer comunidade inacessível. O grande marco da sua vida que foi a Comuna da Luz (1917) assentava em viver a ruralidade como um projeto de autonomia, pondo em prática novas formas e relações de viver em comunidade. Viver no “aqui e agora” a anarquia. A procura dessa autonomia anti-autoritária, quebrando com o salariato e a propriedade privada, não isolava a comuna, mas antes requeria a ação com os demais vizinhos, pois de uma ideia de transformação social se tratava. O outro lado da potencialidade individual de Gonçalves Correia é pois a potencialidade da comunidade.
Filipe Nunes
(via Alambique)
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