3 de setembro de 2012

"O que é a vida?", por Guerra Junqueiro

"A vida é o mal. A expressão última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera a dez passos perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada.

Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de guerra, com as escamas de aço, os intestinos de bronze, o olhar de relâmpagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha, mastigando labaredas, vomitando morte.

A pata pré-histórica do atlantossáurio esmagava o rochedo. As dinamites do químico estoiram montanhas, como nozes. Se a presa do mastodonte escavacava um cedro, o canhão Krupp (1) rebenta baluartes e trincheiras. Uma víbora envenena um homem, mas um homem, sozinho, arrasa uma capital.

Os grandes monstros não chegam verdadeiramente na época secundaria; aparecem na última, com o homem. Ao pé de um Napoleão, um megalossauro é uma formiga. Os lobos da velha Europa trucidam algumas dúzias de viandantes, enquanto milhões e milhões de miseráveis caem de fome e de abandono, sacrificados à soberba dos príncipes, à mentira dos padres, e à gula devoradora da burguesia cristã e democrática. O matadouro é a fórmula crua da sociedade em que vivemos. Uns nascem para rezes, outros para verdugos. Uns jantam, outros são jantados. Há criaturas lobregas, vestidas de trapos, minando montes, e criaturas esplêndidas, cobertas de ouro e de veludo, radiando ao sol. No cofre do banqueiro dormem pobrezas metalizadas. Há homens que ceiam numa noite um bairro fúnebre de mendigos. Enfeitam gargantas de cortesãs rosários de esmeraldas e diamantes, bem mais sinistros e lutuosos que rosários de crânios ao peito de selvagens.

Vivem quadrupedes em estrebarias de mármore, e agonizam párias em alfurjas infectas, roídos de vermes. A latrina de Vanderbilt custou aldeolas de miseráveis. E, visto os palácios devorarem pocilgas, todo o boulevard grandioso reclama um quartel, um cárcere e uma forca. O deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinela. Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior quinhão. Homens que têm impérios, e homens que não têm lar.

Os pés mimosos das princesas deslizam luzentes de ouro por alfombras, e os pés vagabundos calcam, sangrando, rochedos hirtos e matagais. Bebem champagne alguns cavalos do sport, usam anéis de brilhantes alguns cães de regaço, e algumas criaturas, por falta de uma côdea, acendem fogareiros para morrer. Bendito o óxido de carbono que exala paz e esquecimento! E a natureza, insensível ao drama bárbaro do homem! Guerras, ódios, crimes, tiranias, hecatombes, desastres, iniquidades, deixam-na indiferente e inconsciente, como o rochedo imóvel, bulindo-lhe a asa de uma vespa. O clamor atroador de todas as angústias não arranca um ai da imensidade inexorável. A aurora sorri com o mesmo esplendor aos campos de batalha ou ao berço infantil, e as ervas gulosas não distinguem a podridão de Locusta (2) da podridão de Joana d’Arc. Reguem vergéis com o sangue de Iscariote (3) ou com o sangue de Cristo, e os lírios inocentes (estranha inocência!) desabrocharão, igualmente cândidos e nevados."

Notas:
1 – Krupp: família alemã proprietária de indústrias de armamento militar. Existiu um canhão de grandes proporções, testado mortiferamente na I guerra mundial, com o nome de uma mulher da família: Berta.
2 – Matrona romana (68 d. C.) de poucos escrúpulos.
3 – Judas Iscariote: um dos apóstolos, aquele que entregou, por trinta "dinheiros", Jesus Cristo aos sacerdotes judeus e, depois, os remorsos empurraram para o suicido por enforcamento.




(texto e notas transcritas do blogue Mais Évora)

Sem comentários: