18 de setembro de 2012

António Gonçalves Correia, precursor da Permacultura portuguesa

O texto que se segue foi preparado para ser apresentado na sessão/colóquio do passado dia 15 de Setembro, na Casa do Alentejo. A dinâmica da sessão e a falta de tempo dela resultante não me permitiram fazê-lo. Em todo o caso aproveito este espaço para divulgar aquilo que preparei sobre a ideia - que de facto me parece inteiramente justificada - de que Gonçalves Correia foi o precursor em Portugal do moderno conceito de Permacultura.

Agradeço desde já todos os comentários, críticas e afins.


António Gonçalves Correia, precursor da Permacultura portuguesa
por Rui Vasco Silva
(Casa do Alentejo, 15/09/2012)


“Os homens temem este desconhecido no qual entrariam
se renunciassem à actual ordem da vida conhecida.
Sem dúvida, é bom temer o desconhecido, quando a nossa
situação conhecida é boa e segura; mas este não
é o caso e sabemos, sem margem de dúvida,
que estamos à beira do abismo” (1)
Leão Tolstoi


Gostaria de iniciar esta minha curta intervenção saudando a Casa do Alentejo e a Biblioteca Municipal de Beja por em boa hora terem trazido esta exposição sobre a vida e o pensamento de António Gonçalves Correia à cidade de Lisboa. A actualidade da mensagem do velho anarquista merece bem o esforço da sua divulgação e valorização, como é o caso. Creio que posso falar em nome da família neste agradecimento público e sentido a todos quantos se empenharam e empenham não apenas neste evento mas também no conjunto de iniciativas que trazem para o século XXI a obra e sobretudo o exemplo prático de um homem que esteve na vanguarda do que de melhor se pensou e fez no Portugal da chamada 1ª República.

Gonçalves Correia, um homem do seu tempo com um pensamento avançado

O pensamento e o exemplo de Gonçalves Correia merecem uma abordagem séria e contextualizada, mobilizadora de esforços, vontades e criatividade para tornar possível num futuro que não se pretende muito distante aquilo que por duas vezes tentou há praticamente 100 anos atrás.

Já o referi antes e repito: abordar a vida e obra de António Gonçalves Correia deve ser muito mais do que um exercício académico ou um exercício meritório de homenagem a uma figura do passado. O desafio que temos pela frente é recuperar para o momento actual, sem anacronismos mas também sem medo de assumir claramente a actualidade da sua proposta libertária, as dimensões fundamentais daquilo pelo que se bateu abnegadamente.

A comuna da Luz, comunidade precursora da moderna Permacultura portuguesa

Neste colóquio proponho-me apresentar uma reflexão sobre a relação que me parece evidente entre o moderno conceito de “Permacultura” e o conjunto coerente de textos que nos deixou Gonçalves Correia sobre os três pilares básicos do chamado movimento de transição: 1) o cuidado com a terra, 2) o cuidado com as pessoas, e 3) a repartição dos excedentes.

Começarei por contextualizar as ideias de Permacultura e de Transição:

A Permacultura surge enquanto conceito moderno na década de 70 embora naturalmente existam práticas (parcial ou integralmente) aparentadas com ela desde há milhares de anos. A sua intenção é servir como referente integral, ou holístico, para a construção de comunidades mais saudáveis e sustentáveis, tanto no plano relacional como no plano económico-ambiental. Nesse sentido, todas as pessoas que colocam em prática um programa comunitário baseado nos princípios da Permacultura obrigam-se, voluntariamente, a respeitar a terra e todos os seres vivos que nela vivem e dela dependem; a respeitar os outros seres humanos membros da comunidade, procurando criar e manter um relacionamento baseado em princípios éticos irrepreensíveis; a partilhar os recursos e os meios de subsistência básicos, no sentido de gerar uma comunidade equilibrada e focalizada naquilo que é verdadeiramente relevante para o bem-estar de todos.

Os princípios enunciados casam de forma perfeita com aqueles que António Gonçalves Correia apresentou em Évora no ano de 1922, e que se encontram publicados no opúsculo “A felicidade de todos os seres na sociedade futura”.

Eles são igualmente a base sólida sobre a qual se deverão estruturar os projectos de Transição que se vêm multiplicando um pouco por todo o mundo (e em Portugal também, como exemplos a seguir em Sintra, Linda-a-Velha ou Telheiras, na região de Lisboa, onde nos encontramos), e que têm como objectivos fundamentais criar respostas locais e resilientes, no seio das comunidades, aos problemas que se colocam – e que já não são ignoráveis – por via da degradação ambiental, das alterações climáticas e do chamado “Pico do Petróleo”, ou seja, o ponto de máxima extração de petróleo, a partir do qual esta declina.

O escritor de tendência libertária M. Ricardo Sousa aborda, de certa forma, este mesmo tema no seu recente “Os caminhos da anarquia”, quando escreve:
“De todas as formas associativas que podem resistir ao passar do tempo e às intempéries futuras, a mais adequada é pois a dos grupos de afinidades, que vêm desde o século XIX, pequenos colectivos sólidos entre amigos-companheiros, no quais o interconhecimento pessoal, a confiança e a possibilidade de debate aberto possibilitam acções consistentes e uma resistência coerente a longo prazo”. (2)

O que é isto senão a expressão prática da resiliência a desenvolver no seio das comunidades de transição?

Naturalmente que quando nos primeiros anos da república portuguesa António Gonçalves Correia, juntamente com o grupo de camaradas seus, se lançou à aventura de criar a primeira Comuna autogestionária e tendencialmente autónoma em Portugal, ainda as questões ligadas ao petróleo e à degradação ambiental e climática não se colocavam. Em todo o caso existiam outros problemas fundamentais – como a iliteracia, o alcoolismo, a doença e o miserável destino a que se encontravam votados os trabalhadores rurais alentejanos – para os quais a proposta de uma pioneira “Permacultura” libertária portuguesa também continha respostas concretas e autênticas.

A Comuna da Luz, surgida durante a segunda década do século XX no Vale de Santiago em Odemira, foi como se sabe reprimida e desmembrada pelo Sidonismo moribundo, ficando para sempre a dúvida acerca da sua real viabilidade. Seja como for tratou-se de uma primeira experiência, certamente mais marcada pelo voluntarismo e a real vontade de viver em felicidade e comunhão num território libertado do que pela preparação dos seus promotores, Gonçalves Correia evidentemente incluído. A Comuna Clarão, criada mais tarde em Albarraque, nas imediações da Serra de Sintra, é em tudo diferente da precursora alentejana. O seu insucesso deve-se a outras condicionantes, incluindo o contexto político e social em que surge, com o golpe pré-fascista de 1926 em andamento, e o fascismo salazarista já em perspectiva perante uma República burguesa incapaz de resolver as múltiplas e profundas contradições que a infectavam.

Sobre a Comuna da Luz existem escritos de enorme interesse, a carecer de estudo e análise, cruzamento com outros textos de Gonçalves Correia, de outros autores e pensadores do campo anarquista. Em todo o caso uma leitura inicial permite-nos identificar plena coincidência entre o projecto tolstoiano de Gonçalves Correia e muito daquilo que hoje se encontra em curso nas iniciativas de transição em Portugal:

• A ideia de comunidade por oposição à cultura imposta de individualismo agressivo, gerador de infelicidade pessoal e colectiva numa sociedade dominada pelo pessimismo, pelos químicos antidepressivos e por formas de alienação coletiva centradas em projectos de vida-consumo;
• O apelo a nova ética da vida, expresso não apenas no que escreveu sobre a necessidade de uma sociedade geradora da felicidade de todos os seres (humanos e não humanos) mas sobretudo no exemplo de quem comprava gaiolas de pássaros apenas com o objectivo de os libertar, de quem aguardava pacientemente que as formigas se retirassem da bacia que utilizava para se lavar, de forma a não matar desnecessariamente nenhum ser vivo;
• A defesa de um estilo de vida simples, de uma dieta equilibrada e natural, da abstinência relativamente ao consumo do álcool, que representava então (como de certa forma também hoje) uma verdadeira prisão dos mais humildes e dos explorados;
• O projecto de partilha, no seu caso teoricamente enquadrado na ideia da abolição da propriedade privada e individual, geradora de excedentes e de todas as doenças sociais de que padecem as sociedades estruturadas em classes sociais.

Pontos de divergência, ou limitações das ideias de Permacultura e Transição actuais

Existem evidentemente pontos de afastamento entre o comunismo prático de Gonçalves Correia e as modernas abordagens da Permacultura, que procuram distanciar-se, ou abster-se, de reivindicações de transformação social mais profundas, ligadas por exemplo à propriedade, às relações de produção, a aspectos concretos do tempo em que vivemos, como são as alterações ao nível da legislação laboral (geradoras de pobreza, de menos tempo de descanso e lazer, de mais exploração), das prestações e apoios sociais (geradoras de miséria injustificável num mundo de opulência e de recursos financeiros imensos, ainda que extraordinariamente mal distribuídos), do acesso a serviços comuns – públicos – que garantam saúde, educação, cultura, habitação a todo o ser humano.

Estas limitações que aponto à moderna Permacultura e à ideia de Transição são igualmente imputáveis de uma forma geral ao movimento ambientalista, que tende a separar o problema da relação homem/natureza (3) do problema das relações sociais e de produção dentro das sociedades humanas, ou da própria essência agressiva, exploradora e destrutiva do capitalismo. A perspectiva de um “capitalismo verde” é uma ilusão cultivada pela classe dominante. É como pescar atum em vias de extinção com redes “amigas” dos golfinhos. Um total contrassenso no seio de um sistema que tem como essência nuclear a acumulação privada de capital através de uma operação matemática simples: maximização dos proveitos contra a minimização dos custos. Não há ambiente, natureza nem comunidade que resistam a lógica tão desprovida de sentido.

Creio que não é possível sonhar com um mundo mais equilibrado e com comunidades mais resilientes, propostas de inegável mérito da Permacultura e do projecto de Transição, sem que a transformação se alargue a aspectos mais imediatos e vitais relativos à vida de cada ser e de cada comunidade em concreto.
“A luta pela Natureza é a disputa que os trabalhadores e os povos devem encetar num quadro muito mais vasto. Importa clarificar junto de todos que não é possível preservar a Natureza sem construir um novo modelo de sociedade. É intrinsecamente contraditória a manutenção do modelo de produção actual e a preservação e democratização dos recursos.” (4)

Por outro lado não acredito em projectos desligados do contexto envolvente, como ilhas luminosas isoladas e ignorantes face ao sofrimento que fora delas se aprofunda. Creio sinceramente que Gonçalves Correia pensava da mesma forma. E que foi essa perspectiva, expressa na influência da Comuna (da Luz, por exemplo) na sua envolvente que, após as ocupações de terras no Vale de Santiago, determinou a perseguição que lhe foi movida. Ficaram ao nosso dispor a experiência, os ensinamentos, o exemplo.

O que fazer então?

Cabe-nos ter a coragem suficiente para retomar aspirações e esperanças antigas para dar resposta a problemas novos. Fazê-lo implica na minha óptica três atitudes básicas perante a realidade:

1) Cultivar um olhar mais crítico sobre a realidade e sobretudo sobre as súmulas desta que todos os dias nos são servidas já mastigadas nas televisões, rádios e jornais. Participar activamente na luta de massas. Só assim se poderão gerar entre a massa dos explorados perspectivas distintas daquelas que hoje se massificaram na análise do mundo, e que correspondem fundamentalmente à perspectiva do status quo, das classes dominantes. Marx escreveu um dia que a ideologia dominante é em regra a ideologia da classe dominante.

2) Enfrentar o medo e seguir em frente: Leão Tolstoi, referência de Gonçalves Correia, escreveu um dia que o temor não faz qualquer sentido quando sem margem para dúvidas estamos à beira do abismo. Em “A escravidão humana” citava também aqueles que permanentemente advertem os pobres e os explorados para as consequências funestas da sua revolta… Ora, se o fazem é porque apenas eles – os imperantes – têm algo a perder com uma alteração radical do sistema político, económico, social e cultural em que nos encontramos.

3) Por fim, reforçar a coerência nas nossas vidas. Importa que nos comportemos, diariamente, de acordo com os valores que defendemos porque é precisamente esse o real significado de coerência: a correspondência entre o pensamento e a acção. A incoerência e a contradição são características presentes em todos os seres humanos. Creio em todo o caso que esse não deve ser um pretexto para que não procuremos viver mais, todos os dias, de acordo com aquilo em que acreditamos, sendo certo que as nossas convicções não são (não podem nem devem ser) imutáveis, e que evoluem no confronto diário com as realidades históricas em construção.

Herbert Marcuse escreveu um dia que “a Revolução mais necessária parece ser a mais improvável” (5). Pessoalmente creio que a Revolução mais necessária é aquela que formos capazes de concretizar; aquela que as nossas forças, a nossa criatividade, a nossa união e a nossa coragem forem capazes de erigir, no concreto e não nas páginas dos livros ou nos palanques dos comícios.

Não há caminhos inevitáveis nem destinos previamente traçados. E como Brecht referiu um dia, “As revolução começam sempre nas ruas sem saída”, como esta em que nos encontramos parece ser.

Muito obrigado pela vossa atenção.


Notas:

1) Texto citado por M. Ricardo Sousa em "Os Caminhos da Anarquia. Uma Reflexão Sobre as Alternativas Libertárias em Tempos Sombrios", Letra Livre.
2) Ibidem, p.68.
3) Este binómio em si já é uma artificialidade uma vez que o homem é parte da natureza.
4) Miguel Tiago, "A luta pela natureza é a luta pelo socialismo".
5) Texto citado por M. Ricardo Sousa em "Os Caminhos da Anarquia. Uma Reflexão Sobre as Alternativas Libertárias em Tempos Sombrios", Letra Livre.

3 comentários:

Mariana Goes disse...

Gostei muito deste trabalho!

Anónimo disse...

Academia Popular de Filosofia|voz do operário

penso que isto pode interessar

Jorge disse...

Muito boa apresentação. Há mais de um ano que sigo tanto qt possível alguns Movimentos de Transição, em particular de L-a-Velha, mas não sabia que, embora noutro contexto, muito antes se tentara criar artificialmente (porque não é espontâneo como em povos culturalmente indígenas) o conceito de uma comunidade ecossistemica em todas as suas vertentes ambiente-sociais e económicas, e sobretudo em Portugal.
Parabéns!