7 de novembro de 2009

Tolstoianismo

"Gonçalves Correia dá-me vontade de rir pela sua ingenuidade e tolstoianismo - mas acaba por se me impor. Este homem, que pretende realizar um sonho, dá a esse sonho tudo o que ganha, e, apesar da gedelha, das considerações ingénuas, faz-me pensar"

Raul Brandão, em "Os operários"
A Gonçalves Correia é, não raras vezes, atribuída a etiqueta de tolstoianista, ou discípulo da doutrina humanista de Leão Tolstoi, o escritor russo falecido em 1910, pouco antes da fundação da Comuna da Luz, em 1916.

Certamente que não foi, nem seria hoje, qualificação incomoda para o velho anarquista, que se leu Tolstoi - e certamente leu - encontrou em várias passagens dos seus romances, e em particular nalgumas personagens, comportamentos e visões da vida bem próximas daquelas que defendia: a vida simples, o desprezo pela vida frenética das cidades por oposição à proximidade com a natureza, o pacifismo, o desprezo pela guerra e pelo confronto belicista, uma certa proximidade com um cristianismo primitivo e quase franciscano-espiritual, que encontra expressão no seu poema "O meu Deus".

Sobre o modo de vida da Comuna se pode ler no artigo "Impressões da Comuna", datado de 30/1/1916 e incluindo no período "A Questão Social". A propriedade colectiva, o socialismo prático e a concretização, num naco de terra, de um ideal fraterno fazem Gonçalves Correia transbordar de alegria, num texto exclamativo, que merece aliás réplica por parte de um seu camarada anarquista, Miguel Correia, o qual mais pragmático adverte que "nas suas impressões não transparece a vida económica da Comuna".

Estou certo de que Gonçalves Correia não desprezava, nem negligenciava, nenhuma dimensão material da Comuna. Em todo o caso seria sempre o maravilhoso desconhecido, imaterial, que mais o motivava a insistir no projecto, a não deixar morrer o "Éden" criado a 3 quilómetros apenas das trevas e da "estrada do crime".

Tal como Tolstoi, Gonçalves Correia viria a morrer profundamente afectado por uma terrível depressão. As suas causas? Apenas posso especular. Mas não me custa acreditar que a ditadura fascista e o fracasso dos seus projectos, esmagados pela ignorância e repressão dos homens, lhe tivessem imposto a tristeza crónica que carregava em si.

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Leão Tolstoi, 9/11/1828 - 20/11/1910. Escritor russo. Autor de grandes clássicos da literatura universal, como "Anna Karenina", "Guerra e Paz" e "Cossacos"


Leão Tolstoi, em 1908.

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Ainda no que se refere ao tolstoianismo (embora solitário, neste caso), recomendo vivamente a leitura do livro "O lado selvagem" de Jon Krakauer, traduzido para português europeu e editado em Portugal pela Presença.



Trata-se de uma breve biografia de Christopher McCandless (na fotografia em cima), o jovem norte-americano que, em larga medida inspirado no tolstoianismo (bem como na obra ficcional de Jack London), deixou para trás o "conforto" do dia-a-dia das grandes cidades para abraçar uma vida errante e lançar-se ao grande desafio do Norte para os aventureiros solitários, o Alasca.

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